Responsabilidade Penal Ambiental: Caso do incêndio de Pedrógão Grande

O que pode ter falhado na atribuição de responsabilidade penal-ambiental no caso de Pedrógão Grande?


“Com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”, escreveu Stan Lee, escritor de banda desenhada, na sequência da atribuição de um super-poder a um herói. Fora da banda desenhada a frase aplica-se à sociedade atual, que vê os órgãos de poder como entidades nas quais pode confiar para garantir a satisfação dos seus interesses. Com o poder que lhes foi atribuído pelos cidadãos, os órgãos têm o dever de cuidar deles e do ambiente que os rodeia, sendo esta a sua grande responsabilidade, algo que não foi implementado no caso do incêndio de Pedrógão Grande e em muitos outros onde se verificou uma desresponsabilização penal. 
Segundo um estudo do Jornal de Notícias, na última década, apesar de as autoridades terem registado cerca de 82000 crimes ambientais, apenas 6% dos casos de poluição e danos contra a natureza foram julgados em tribunal, verificando-se uma não aplicação de penas de prisão pelos tribunais relativamente a este tipo de casos, sendo que parte dos processos-crime relacionados com o ambiente nem chega a fase de julgamento e dos que chegam, a maioria resulta em multas de reduzido montante.
No caso do incêndio de Pedrógão Grande, que resultou em 66 vítimas mortais (47 na EN), 253 feridos e provocou a destruição de 500 casas e 50 empresas, importa destacar as causas que provocaram a sua ignição e a sentença proferida pelo tribunal, na qual nenhum dos arguidos foi criminalmente responsabilizado. 
Segundo um relatório técnico independente a causa da ignição deveu-se a uma linha elétrica de média tensão da EDP que se encontrava em contacto com a vegetação circundante, a qual deveria ter sido obrigatoriamente removida por motivos de precaução e redução de risco deste tipo de incidentes. Contudo, as autoridades responsáveis contrariaram este parecer e consideraram que o início se deveu à trovoada seca, temperatura elevada e ao vento forte que se fazia sentir naquele momento. No entanto, a comunidade de Pedrógão Grande, bem como o Presidente da Liga de Bombeiros foram ao encontro das conclusões do estudo independente, corroborando que o incêndio não se deveu a causas naturais pois já tinha iniciado horas antes do aparecimento da trovoada. 
Quanto à atribuição de responsabilidade criminal, este processo resultou na constituição de 11 arguidos, a saber: os presidentes à data das Câmaras de Pedrógão Grande e das regiões atingidas, a responsável pelo Gabinete Florestal de Pedrógão Grande, 2 funcionários da EDP, o Comandante dos Bombeiros Voluntários de Pedrógão Grande e 3 trabalhadores da Ascendi (concessionária responsável pela limpeza do Pinhal onde passava a EN 236-1 na qual deflagrou o incêndio). Foram-lhes imputados pelo Ministério Público os crimes de ofensa à integridade física negligente previstos nos arts. 148º do CP, assim como o crime de homicídio negligente do art.137º do CP, uma vez que existiu uma descoordenação das autoridades acima referidas, não tendo solicitado à GNR o encerramento da EN 236-1, tendo os militares por falta de informação conduzido alguns veículos para a mesma, para além de se ter verificado uma falha no sistema de comunicações SIRESP. Quanto à verificação de um possível crime de incêndio florestal negligente, p.p. pelo art.274º CP, este foi descartado pelo Ministério Público por falta de indícios probatórios sobre a origem do mesmo, pelo que não foi possível fazer qualquer imputação penal. 
Estava também em causa uma omissão pela entidade competente não ter realizado a limpeza da vegetação na área onde o incêndio supostamente teve início, sancionável pelo regime contraordenacional. 
Quanto às autoridades policiais, estas tinham um dever de garante para com a coletividade, no que respeita à assunção de funções de guarda e assistência, que tem por base uma relação de confiança entre a população e estas entidades, uma vez que o dever jurídico-público de impedir a lesão de bens jurídicos da comunidade é inerente às funções das entidades policiais, como defende o Professor Figueiredo Dias.
A não indiciação de qualquer arguido relativamente ao crime negligente de incêndio florestal deveu-se, na minha perspetiva, à falta de uma profunda e mais completa investigação, nomeadamente à desconsideração que se deu ao estudo efetuado por uma entidade independente, que demonstrou que a falta de limpeza da vegetação onde passava a rede elétrica foi determinante para a propagação do incêndio, assim como às testemunhas oculares que presenciaram o momento em que o incêndio começou, com condições atmosféricas contrárias às dadas como as mais prováveis, sugerindo que há aqui uma tentativa de encobrir a verdadeira causa do começo do incêndio, possivelmente influenciada por interesses públicos.
Também a falta de limpeza das áreas florestais junto às populações, vias públicas e onde passam linhas aéreas de alta e média tensão, encontrando-se positivada num regime menos gravoso, o contraordenacional, relativamente ao criminal, foi condição para que este processo não fosse investigado de uma forma mais extensiva, pois de outra forma, se a falta de limpeza na faixa de proteção às linhas de tensão estivesse prevista como crime no CP ainda que a título de negligência (violação da falta de cuidado), possivelmente o desfecho deste processo levaria à acusação de pelo menos alguns dos arguidos.
Após análise do enquadramento jurídico-ambiental português, constataram-se dificuldades na atribuição de responsabilidade criminal pelos danos causados, como ficou evidenciado. Devido à legislação ambiental ainda ser bastante recente, suscitar alguma incerteza e ser pouco clara em alguns aspetos, torna-se difícil a sua aplicabilidade nestes casos. Acresce ainda o facto de esta legislação se encontrar bastante fragmentada, dificultando ainda mais a articulação entre as variadas normas. Um outro aspeto que de certa forma me pareceu influenciar a decisão e dificultar a prova, foi o facto de na atribuição de responsabilidades existirem interesses públicos conflituantes entre si, contrários aos interesses da população. 
Demonstra-se assim necessário aprimorar a legislação ambiental vigente, bem como atribuir-lhe um caráter mais imperativo e coercivo, tornando as consequências das violações das normas ambientais mais gravosas, de modo a que haja responsabilização dos variados intervenientes.

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Maria Nabais, nº62793

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